Qualidade não é Virtude
1- "Qualidade não é um ato, é um hábito": Falso. Justificativa: Em duas partes: a) Aparentemente a palavra "qualidade" no título da matéria tomou o lugar da tradução mais habitual de areté (virtude), logo, aquele conceito mais afeito aos sistemas de produção do século XX está forçosa e anacronicamente alinhado como o pensamento ético da antigüidade. Tal comparação é perigosamente confusa porque sobrepõe perspectivas éticas a aspectos de natureza puramente técnicos da atividade médica. Aliás, esse é um ponto que merece discussão: sobre o ajuizamento de valor, quem garante a excelência? Quem é o terceiro moralmente instituído que responde pelo grande patologista-celestial-onisciente? Sobre quais prerrogativas está assentado o controle externo da ação médica? Onde fica o controle de qualidade do controle de qualidade? Tais títulos de acreditação, não seriam mais um artifício de mercantilização evidentemente não-baseado-em-evidências? b) Há que se ter cuidado com o uso da palavra "ato" com referência ao texto aristotélico dado que esta freqüentemente se enquadra nos conceitos categoriais de ato-potência. O que não está em ato, está em potência, como a estátua está no mármore a ser esculpido. Assim, parece que a palavra em questão merece maior rigor em seu uso, tradução e citação.
2- "Qualidade não é um ato, é um hábito": Falso de novo. Justificativa: Os livros que constituem a Ética a Nicômaco (foto acima) são de estrutura complexa e alguns se inserem no contexto geral de estudo sobre a virtude. Esta é definida, no capítulo II, como um estado habitual que dirige a decisão e que consiste no justo meio relativo a nós, cuja norma é a regra moral. Nada disso me parece, nem de longe, refletir os conceitos modernos relatados na matéria. Da forma como exposto, o conceito de "hábito" fica mais ligado à repetição ad nauseam de procedimentos operacionais padrão que supostamente contribuirão para "preservar a vida, nosso bem maior". Tal noção de hábito não reflete o percurso argumentativo de como é tratada a questão do tempo e da experiência na construção da phronesis (sabedoria).
3- "Aristóteles era médico". Falso. Justificativa: Galeno era médico, o português-prêmio-nobel que inventou a lobotomia era médico, ACM era médico e médico foi o pai de Aristóteles chamado Nicômaco, influenciador dos estudos do filho em terrenos que hoje chamamos biologia. Aristóteles mesmo, não. Não tinha inscrição no Conselho.
4- "Aristóteles era cientista". Falso. Justificativa: Falso... se entendermos a ciência (logo, o cientista) nos moldes de como ela se configurou a partir do século XVII. Cientista foi Pasteur que inventou o leite-longa-vida e teria, facilmente, em cena surreal, seu laboratório interditado pela vigilância sanitária (basta observar as não conformidades nas fotos da época: frascos não rotulados, equipamentos dispostos no chão, ausência de caixa apropriada para descarte de pérfuro-cortantes, etc).
5- "...já na antigüidade a qualidade era um bem almejado e cultivado". Falso. Justificativa: O que era almejado era o próprio bem, metáfora do Sol na caverna de Platão ou a eudamonia: "o bem é aquilo perante o qual nada resiste" (Aristóteles). O bem é um fim em si mesmo, não a qualidade.