Qualidade não é Virtude
A edição nº 100 da Revista "O Patologista" apresenta uma matéria sobre o controle de qualidade em anatomia patológica. Inicia citando Aritóteles ("filósofo, cientista e médico") e compara rapidamente a busca de "qualidade" (hodierna, sustentada por checklists) com as especulações filosóficas da antigüidade clássica. O propósito do presente post não é discutir o mérito da questão sobre mecanismos de qualidade em patologia. Para tanto, recomendo vivamente a leitura do post PICQ do PICQ, no blog Liberdade Reflexiva. No momento gostaria apenas de sair em defesa de Aristóteles, injustamente retratado (e sem direito de resposta) como gestor de qualidade dos tempos antigos. Ainda que alguém possa dizer que se trata tão somente de um recurso comparativo para chamar a atenção para o tema, discordo veementemente e, para isso, pondero sobre o valor de verdade dos 5 pontos (5S´s), a saber:
1- "Qualidade não é um ato, é um hábito": Falso. Justificativa: Em duas partes: a) Aparentemente a palavra "qualidade" no título da matéria tomou o lugar da tradução mais habitual de areté (virtude), logo, aquele conceito mais afeito aos sistemas de produção do século XX está forçosa e anacronicamente alinhado como o pensamento ético da antigüidade. Tal comparação é perigosamente confusa porque sobrepõe perspectivas éticas a aspectos de natureza puramente técnicos da atividade médica. Aliás, esse é um ponto que merece discussão: sobre o ajuizamento de valor, quem garante a excelência? Quem é o terceiro moralmente instituído que responde pelo grande patologista-celestial-onisciente? Sobre quais prerrogativas está assentado o controle externo da ação médica? Onde fica o controle de qualidade do controle de qualidade? Tais títulos de acreditação, não seriam mais um artifício de mercantilização evidentemente não-baseado-em-evidências? b) Há que se ter cuidado com o uso da palavra "ato" com referência ao texto aristotélico dado que esta freqüentemente se enquadra nos conceitos categoriais de ato-potência. O que não está em ato, está em potência, como a estátua está no mármore a ser esculpido. Assim, parece que a palavra em questão merece maior rigor em seu uso, tradução e citação.
2- "Qualidade não é um ato, é um hábito": Falso de novo. Justificativa: Os livros que constituem a Ética a Nicômaco (foto acima) são de estrutura complexa e alguns se inserem no contexto geral de estudo sobre a virtude. Esta é definida, no capítulo II, como um estado habitual que dirige a decisão e que consiste no justo meio relativo a nós, cuja norma é a regra moral. Nada disso me parece, nem de longe, refletir os conceitos modernos relatados na matéria. Da forma como exposto, o conceito de "hábito" fica mais ligado à repetição ad nauseam de procedimentos operacionais padrão que supostamente contribuirão para "preservar a vida, nosso bem maior". Tal noção de hábito não reflete o percurso argumentativo de como é tratada a questão do tempo e da experiência na construção da phronesis (sabedoria).
3- "Aristóteles era médico". Falso. Justificativa: Galeno era médico, o português-prêmio-nobel que inventou a lobotomia era médico, ACM era médico e médico foi o pai de Aristóteles chamado Nicômaco, influenciador dos estudos do filho em terrenos que hoje chamamos biologia. Aristóteles mesmo, não. Não tinha inscrição no Conselho.
4- "Aristóteles era cientista". Falso. Justificativa: Falso... se entendermos a ciência (logo, o cientista) nos moldes de como ela se configurou a partir do século XVII. Cientista foi Pasteur que inventou o leite-longa-vida e teria, facilmente, em cena surreal, seu laboratório interditado pela vigilância sanitária (basta observar as não conformidades nas fotos da época: frascos não rotulados, equipamentos dispostos no chão, ausência de caixa apropriada para descarte de pérfuro-cortantes, etc).
5- "...já na antigüidade a qualidade era um bem almejado e cultivado". Falso. Justificativa: O que era almejado era o próprio bem, metáfora do Sol na caverna de Platão ou a eudamonia: "o bem é aquilo perante o qual nada resiste" (Aristóteles). O bem é um fim em si mesmo, não a qualidade.
1- "Qualidade não é um ato, é um hábito": Falso. Justificativa: Em duas partes: a) Aparentemente a palavra "qualidade" no título da matéria tomou o lugar da tradução mais habitual de areté (virtude), logo, aquele conceito mais afeito aos sistemas de produção do século XX está forçosa e anacronicamente alinhado como o pensamento ético da antigüidade. Tal comparação é perigosamente confusa porque sobrepõe perspectivas éticas a aspectos de natureza puramente técnicos da atividade médica. Aliás, esse é um ponto que merece discussão: sobre o ajuizamento de valor, quem garante a excelência? Quem é o terceiro moralmente instituído que responde pelo grande patologista-celestial-onisciente? Sobre quais prerrogativas está assentado o controle externo da ação médica? Onde fica o controle de qualidade do controle de qualidade? Tais títulos de acreditação, não seriam mais um artifício de mercantilização evidentemente não-baseado-em-evidências? b) Há que se ter cuidado com o uso da palavra "ato" com referência ao texto aristotélico dado que esta freqüentemente se enquadra nos conceitos categoriais de ato-potência. O que não está em ato, está em potência, como a estátua está no mármore a ser esculpido. Assim, parece que a palavra em questão merece maior rigor em seu uso, tradução e citação.
2- "Qualidade não é um ato, é um hábito": Falso de novo. Justificativa: Os livros que constituem a Ética a Nicômaco (foto acima) são de estrutura complexa e alguns se inserem no contexto geral de estudo sobre a virtude. Esta é definida, no capítulo II, como um estado habitual que dirige a decisão e que consiste no justo meio relativo a nós, cuja norma é a regra moral. Nada disso me parece, nem de longe, refletir os conceitos modernos relatados na matéria. Da forma como exposto, o conceito de "hábito" fica mais ligado à repetição ad nauseam de procedimentos operacionais padrão que supostamente contribuirão para "preservar a vida, nosso bem maior". Tal noção de hábito não reflete o percurso argumentativo de como é tratada a questão do tempo e da experiência na construção da phronesis (sabedoria).
3- "Aristóteles era médico". Falso. Justificativa: Galeno era médico, o português-prêmio-nobel que inventou a lobotomia era médico, ACM era médico e médico foi o pai de Aristóteles chamado Nicômaco, influenciador dos estudos do filho em terrenos que hoje chamamos biologia. Aristóteles mesmo, não. Não tinha inscrição no Conselho.
4- "Aristóteles era cientista". Falso. Justificativa: Falso... se entendermos a ciência (logo, o cientista) nos moldes de como ela se configurou a partir do século XVII. Cientista foi Pasteur que inventou o leite-longa-vida e teria, facilmente, em cena surreal, seu laboratório interditado pela vigilância sanitária (basta observar as não conformidades nas fotos da época: frascos não rotulados, equipamentos dispostos no chão, ausência de caixa apropriada para descarte de pérfuro-cortantes, etc).
5- "...já na antigüidade a qualidade era um bem almejado e cultivado". Falso. Justificativa: O que era almejado era o próprio bem, metáfora do Sol na caverna de Platão ou a eudamonia: "o bem é aquilo perante o qual nada resiste" (Aristóteles). O bem é um fim em si mesmo, não a qualidade.